Agora à tarde, saí para comprar uma lousa. Daquelas pequenas, de fórmica, onde se escreve com canetas Pilot (acho que isso é muito velho). A tal coisa faz parte da lista de material escolar da Valentina. Não sabia o nome em inglês. Na verdade, deveria ter dado uma olhada no dicionário antes de sair, mas acabei esquecendo.
Fui em duas lojas de brinquedos e nada. Em uma tinha apenas um quadro negro, movido a giz. Caminhei pela Westbourne Grove até Queensway, em Bayswater onde há um pequeno mall. Não tive sucesso alí também. Continuei a busca. Entrei em uma loja um pouco adiante. Dois atendentes estavam lá. Como sempre, dei uma olhada geral, para ver se encontrava.
Existem coisas que só eu sou capaz de fazer. Como não achei, peguei um pacote de canetas Pilot e falei para o atendente que queria algo onde pudesse escrever com aquilo. O cara não entendeu, claro. Fui tentando: Ardoise? Cuadro negro? Lousa? Sem chance. Aí o boneco resolveu fazer malcriação e me disse que não podia me atender se eu não sabia o que comprar e virou as costas.
Minha reação foi a de sempre: "Wha'ever!" - Passados alguns segundos, me dei conta que o cara nem tinha ouvido a minha resposta. Percebi que o murmurar do desprezo, na maioria das vezes, não é compreendido. O foda-se é mínimal demais para quem não tem vontade de entender e normalmente é interpretado como desalento.
Cheio de brios, virei em direção ao idiota e perguntei se era eu que não sabia o que queria comprar ou ele que era incapaz de vender.
A outra atendente que, assistiu a tudo, e fingia de morta até aquele instante, resolveu se coçar. Veio educadamente me perguntar o que eu queria. Dei as mesmas explicações e ela falou: "Ah ! Whiteboard ! Foi até o estoque e pegou para mim. Resumo da ópera: se tivesse parado no wha'ever estaria sem a lousinha da minha filha.
Minha natureza sempre foi introspectiva e se tornou, depois de vinte anos sofrendo da chamada síndrome de pânico que para outros é distúrbio de ansiedade ou o cazzo que queiram, resignada.
Crise após crise, algo me escapava pelas mãos. Minha mobilidade ia lentamente acabando. Passava mal em transporte público? Tentava ir a pé. Não dava mais para caminhar sozinho? Chamava uma alma caridosa para me acompanhar. Isso já não funcionava? Bora de taxi ou de carona. Sempre aceitando as imposições da doença.
E assim se passaram muitos anos, toneladas de medicamentos foram ingeridas sem sucesso e eu era cada vez mais dependente dos outros. Deleguei o comando e isso me custou várias decepções. Até roubado fui. Mas nem tudo foi espinhoso. Consegui realizar algumas coisas. Casei duas vezes e gerei dois filhos, apesar dos pesares.
Poucas pessoas sabiam da real situação em que eu vivia. Morria de vergonha de falar sobre o assunto. Escondia dos amigos o quão era difícil, e muitas vezes impossível, fazer coisas corriqueiras. Preferi o silêncio à verdade. Esse comportamento criou uma falsa aura em torno de mim. Fui considerado uma pessoa excêntrica.
Nem para a minha mulher eu fui capaz de dizer o tamanho da paúra. Dizia que com os remédios a coisa estava controlada. Como não conseguia fazer muito, era cobrado por isso: "Você não levou a Valentina no parquinho? Será que eu vou ter que sair do trabalho para ir ao lugar XYZ?" - E por aí vai.
No final de 2006, tive a sorte de encontrar um jovem psiquiatra que começou a me tratar. Passados uns dez meses e com a doença relativamente sob controle, me aconselhou a fazer análise. Começei e isso foi muito bom.
Tudo parecia fazer sentido, Já tinha as alavancas, só faltava a mudança do cenário para pontuar a nova vida. E isso aconteceu. Vim para Londres, onde não havia opções. Tinha que andar para levar a Valentina na escola, usar metro, caminhar só para todos os lados. Estava enfim, curado.
Segurança recobrada, algumas mudanças de comportamento ficaram mais visíveis que outras. Mas uma coisa eu não consegui mudar. Ainda preferia o silêncio a uma saudável discussão. Continuei afásico, só que agora para para demonstrar meu desperezo. Nunca fui uma pessoa impositiva, ao contrário, sempre ouvi o argumento alheio, mas me confesso um tanto intolerante com quem nada tem para acrescentar e mesmo assim fica emitindo opiniões à meu respeito.
Mas porque eu escrevi tudo isso? Por que a vida me cobra tranformações maiores e mais importantes neste momento. Está na hora de verbalizar a inconfomidade que eu consigo demonstrar quando estou em frente a um teclado e assim, quando um idiota qualquer tiver pouco respeito por este velho sobrevivente, não haverá mais nem um segundo de hesitação.
E para isso senti que seria fundamental contar a história da minha doença. Escrever para que o texto da libertação seja visto por várias das pessoas. Para que os que me conhecem e lêem o expatriated entendam o meu comportamento no passado. Acabou a vergonha, estou completamente curado.
Isso posto, chegou o momento do pensamento se materializar e gerar algo produtivo. Menos filosofia e mais ação. Parafraseando Karl Marx: "Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diversas maneiras; quando o que importa é modificá-lo."
4 comentários:
Bem-vindo ao clube, meu chapa. Somos muitos!!!
É fato. O duro é assumir! bjos
Achei o texto muito bacana...
É engraçado como enxergamos as nossas imperfeições. Normalmente a deixamos de lado e até a cobrimos para poder esquecê-las, mas não tem como, pois é chegado o momento de tomar as rédeas da nossa vida e expulsar os fantasmas.
Pelo visto vc o fez com maestria. Parabéns.
Um grande abraço deste seu amigo virtual
Obrigado Marcelo. Não sei se com maestria, mas vou tentando.
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