quarta-feira, 2 de junho de 2010

Começou ...

Na grande imprensa, o processo de relativizar os crimes cometidos pelo governo de Israel. Aceitar a teoria de que os ativistas, civis e destreinados conseguiram fazer frente, espancar e desarmar soldados de uma das mais bem preparadas unidades militares do mundo é uma pataquada sem tamanho.

O fato de um órgão de imprensa como a BBC divulgar como verossímil a versão oficial é nojento e mostra qual será a postura das grandes potências em relação ao seu aliado. Nem um mísero tapa na bunda, só um tapinha, daqueles cheio de cumplicidade, nas costas.

"Análise: O que deu errado na operação para interceptar navios rumo a Gaza?
Paul Reynolds - Analista para Assuntos Internacionais da BBC News

Muitos em Israel e no resto do mundo concordam que, justificada ou não, a operação para interceptar a frota de navios que levavam ajuda humanitária à Faixa de Gaza deu muito errado.

No jornal israelense Haaretz, um colunista declarou: “Meu filho de seis anos teria se saído muito melhor do que nosso atual governo”.
Então, o que deu errado?

A operação aconteceu a 60 km da costa de Gaza, em um ponto que fica 40 km distante do limite formal estabelecido por Israel para o bloqueio marítimo que o país mantém em torno da Faixa de Gaza.

Um bloqueio marítimo é um recurso legítimo segundo leis internacionais. Ele precisa ser justificado (Israel diz que, sem ele, o grupo Hamas poderia importar armas), precisa ser declarado formalmente (e foi) e precisa ser implementado (como de fato está).

Ao interceptar a frota fora do limite demarcatório do bloqueio, Israel correu o risco de ter sua ação questionada segundo a lei internacional, mas isso é discutível.
Israel argumenta que a frota pretendia, claramente, furar o bloqueio. De fato, durante as formalidades que marcaram o início da operação, ao receber, por rádio, ordens de parar, o navio que liderava a frota disse aos israelenses que seu destino era Gaza.

Cinco dos seis navios que integravam a frota pararam, mas o principal, Mavi Marmara, seguiu em frente.

“Inesperado”
Os avisos, como se esperava, foram ignorados. Então, Israel decidiu usar a força.
Para a operação, os israelenses usaram parte de sua força especial marítima, a Frota 13, com helicópteros e lanchas.
Há discussões em Israel se essa teria sido a unidade correta a ser usada. Ela foi treinada para combate, não para controle de multidões.

Até o momento, o melhor relato do que realmente aconteceu veio de Ron Ben Yishai, repórter do jornal israelense Yediot Achronot, testemunha ocular dos acontecimentos.
Ele diz que o plano era desembarcar um grupo no deck superior, invadir a ponte e tomar o controle do barco. A previsão, ele relata, era de que passageiros apresentariam “resistência leve e possivelmente alguma violência pequena”.
Segundo o jornalista, os soldados foram orientados a confrontar os manifestantes verbalmente, usar táticas de controle de massas e armas de fogo apenas para salvar suas próprias vidas.

Entretanto, à medida que as primeiras tropas desembarcaram, uma por uma, “o inesperado aconteceu. Os passageiros (...) pegaram bastões, cacetetes e estilingues com bolinhas de gude, atacando cada soldado que desembarcava”.
Você pode ver um pouco do ocorrido em um vídeo feito pelos israelenses.
Soldados que descem no deck são atacados, um a um. Um manifestante segurando um cacetete está vestindo uma máscara contra gás. Outros vídeos divulgados pelos israelenses mostram estilingues, bolinhas de gude, barras de metal e uma faca retirada do barco após a operação.

“Os manifestantes atirara”
Ron Ben Yishai menciona o uso, pelos soldados, de armas de paintball. No vídeo, você pode ver um deles, em perfil. Segundo o repórter, essas armas não foram efetivas.

Eu me pergunto se era mesmo tinta o que havia dentro delas, ou alguma outra substância, mas de qualquer forma, não funcionou.
As tropas não foram capazes de invadir a ponte como planejado e uma segunda leva foi despachada de outro helicóptero. Nesse ponto, cerca de 30 ativistas confrontavam 30 israelenses no deck.

Mas algo mais sério estava acontecendo. O repórter declara que os manifestantes “tentaram pegar as armas (dos soldados)”. Eles conseguiram pegar uma pistola, ele diz, quando um soldado, visto no vídeo, foi jogado do deck superior para o inferior.
Os soldados, que tinham começado a usar bombas de efeito moral, pediram permissão para usar suas armas de fogo. A permissão foi concedida.
Isso, entretanto, não é visto no vídeo. Ele é interrompido no momento exato em que um soldado aponta sua arma na direção dos manifestantes.
Me pergunto o que aconteceu depois. Por que o vídeo parou ali?
Os israelenses dizem que os militantes conseguiram se apoderar de duas pistolas e devem tê-las usado, já que os pentes estavam vazios quando as armas foram encontradas.

Ben Yishai também menciona um relato, por um dos membros da tropa, de que os israelenses teriam atirado em alguém que segurava um rifle. Até agora, nenhum rifle foi visto.
Yishai disse que dois soldados foram feridos após, aparentemente, “desordeiros terem atirado contra eles”.

Dúvidas
O que não está claro até agora, é por que tantos morreram e em que circunstâncias. Teriam morrido todos no deck? Em um grupo ou um a um?
Não se pode ver nada disso no vídeo e me pergunto se existiria algum registro, em vídeo, dos acontecimentos. E, caso exista, por que não foi divulgado.
O repórter diz que as tropas atiraram contra “as pernas dos desordeiros”. Pode ter sido, mas algo mais deve ter acontecido.
E, claro, não ouvimos relatos de testemunhas entre os militantes, especialmente os feridos.

Ron Ben Yishaidisse que as forças israelenses cometeram dois erros. Subestimaram o grau de resistência e falharam ao não tê-la vencido de cima, usando gás lacrimogênio e bombas de efeito moral antes de entrar no barco.

Até esse momento, em Israel, a avaliação geral é de que as tropas estavam despreparadas e em número insuficiente.
Foram colocadas em uma posição na qual não tiveram outra opção senão abrir fogo. Esta não é uma boa posição para um comandante colocar seus subordinados. Daí as críticas ouvidas em Israel.

Também está claro que os israelenses tinham poucas informações sobre o que estava sendo preparado no navio.
A história lembra o ataque britânico contra o Êxodus, um navio carregando refugiados judeus que, em 1947, tentou romper o bloqueio naval britânico em torno da então Palestina.

Naquele incidente, também, as tropas invasoras subestimaram a resistência, apelaram para a força e três passageiros acabaram morrendo.
O caso contribuiu para enfraquecer o domínio britânico sobre a Palestina e aumentar o apoio a um Estado Judeu."

Fica o registro de que a maior parte das companias de cruzeiros marítimos usa ex oficiais da tal "Frota 13" para fazer a segurança de seus navios. Deve ser por eles adorarem apanhar de gente comum!

Vale destacar, contudo a correta postura do comentário de Robert Fisk do Independent, feita ontem e publicada no Vi o Mundo:


"Políticos ocidentais, covardes demais para ajudar a salvar vidas
Por Robert Fisk, The Independent, UK, tradução de Caia Fittipaldi
Verdade é que os muitos, gente comum, ativistas, deem-lhes o nome que quiserem, são os que hoje tomam as decisões que mudam o curso dos acontecimentos.
Israel perdeu? A guerra de Gaza de 2008-09 (1.300 mortos) e a guerra do Líbano de 2006 (1.006 mortos) e todas as outras guerras e, agora, a matança da madrugada da 2a.-feira significam que o mundo afinal decidiu rejeitar o mando de Israel? Não esperem tanto. Mas, sim, algo aconteceu.
Basta ler a desfibrada declaração da Casa Branca – que o governo Obama estaria “trabalhando para entender as circunstâncias que cercam a tragédia”. Condenação? Nem uma palavra. E pronto. Nove mortos. Mais uma estatística, na matança no Oriente Médio.
De fato, não, não é só mais uma estatística.
Em 1948, nossos políticos – norte-americanos e britânicos – atacaram Berlim. Uma população esfaimada (nossos inimigos, havia apenas três anos) estavam cercados por exército brutal, os russos, que haviam cercado a cidade. O levante do cerco de Berlim foi um dos momentos altos da Guerra Fria. Nossos soldados e aviadores arriscaram e deram a vida por aqueles alemães mortos de fome.
Parece incrível, não é? Naqueles dias, nossos políticos decidiam; muitas vezes decidiram salvar vidas. Os senhores Attlee e Truman sabiam que Berlim importava, tanto em termos morais e humanos quanto em termos políticos.
Hoje? Gente comum – europeus, norte-americanos, sobreviventes do Holocausto – sim, sim, santo Deus! Sobreviventes dos nazistas! –, os que decidiram viajar até Gaza, porque seus políticos e governantes os abandonaram, falharam, fracassaram.
Onde estavam os políticos e governantes na madrugada da 2ª-feira? OK, ok, apareceram o ridículo Ban Ki-moon, a declaração patética da Casa Branca e o caríssimo Sr. Blair, com cara de “profunda lástima e choque ante a tragédia de tantas mortes”. Mas… E Cameron? E Clegg?
Em 1948, claro, teriam ignorado os palestinos, não resta dúvida. Há aí, afinal, uma terrível ironia: o levante do cerco de Berlim coincidiu exatamente com a destruição da Palestina árabe.
Mas é fato irrecusável de que os muitos, gente comum, ativistas, deem-lhes o nome que quiserem, são os que hoje tomam as decisões que mudam o curso dos acontecimentos. Nossos políticos são desfibrados, sem espinha dorsal, covardes demais, para decidir as decisões que salvam vidas. Por quê? Como chegamos a isso? Por que, ontem, não se ouviu palavra saída da boca de Cameron e Clegg (dentre outros, claro)?
Claro, também, sim, que se fossem outros europeus (ora essa! Os turcos são europeus, não são?) os metralhados naqueles barcos, por outro exército árabe (ora essa! O exército de Israel é exército árabe!), então, sim, haveria ondas e ondas de indignação e ultraje.
E o que tudo isso diz sobre Israel? A Turquia não é aliada muito próxima de Israel? E, de Israel, os turcos recebem o que receberam? Hoje, o único aliado que restava a Israel, no mundo muçulmano, fala de “massacre” – e Israel parece não dar qualquer importância ao que diga a Turquia.
Israel tampouco deu qualquer importância quando Londres e Camberra expulsaram os diplomatas israelenses, depois de Israel forjar passaportes britânicos e australianos, para, com eles, perpetrar o assassinato do comandante Mahmoud al-Mabhouh do Hamás. Tampouco deu qualquer importância aos EUA e ao mundo, quando anunciaram a construção de novas moradias exclusivas para judeus em terra ocupada em Jerusalém Leste, durante visita de Joe Biden, vice-presidente dos EUA, aliado-supremo, a Israel. Se Israel não deu qualquer importância a esses aliados, por que daria alguma importância a alguém, hoje?
Como chegamos a esse ponto? Talvez porque já nos tenhamos habituado a ver israelenses matando árabes; talvez os próprios israelenses tenham-se viciado em matar árabes, até cansarem. Agora, matam turcos. E europeus.
Alguma coisa mudou no Oriente Médio, nas últimas 24 horas – e os israelenses, se se considera a resposta política extraordinariamente estúpida, pós-matança, não dão qualquer sinal de ter percebido a mudança. O que mudou é que o mundo, afinal, cansou-se das matanças israelenses. Só os políticos não têm o que dizer, hoje. Só os políticos estão calados."

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